Nas asas do tédio
Especial Para a Folha
Berlim hoje é celebrada por sua posição de vanguarda na cultura e na música, pelo design e pela arte vibrantes, e também como um ponto de encontro brusco e atraente entre o oeste e o leste. Tudo isso se justifica, mas para mim Berlim também é fascinante como centro de algo mais: o tédio revolucionário.
Permitam-me explicar. Há 20 anos, em Berlim, o muro separava duas escolas distintas de tédio.
Do lado oriental existia a variedade comunista, definida por grandes labirintos de jaulas de concreto pré-fabricado para seres humanos, fábricas sujas despejando poluentes no ar e complexos monumentais de museus e teatros dedicados a uma visão sufocante da alta cultura.
Para os “ost-berliners”, apenas o terror induzido pela Stasi e o consumo copioso de álcool eram capazes de animar as coisas.
Burguesia mimada
Já o lado ocidental, por sua vez, abrigava algo de diferente: o tédio do consumismo bovino do pós-guerra.
A melhor representação disso era a famosa Kaufhaus des Westens, a maior loja de departamentos da Europa [continental], que oferecia muitas e muitas… coisas. Sim, de fato: na KaDeWe havia queijo. E carne. E roupas. Etc.
Apenas um punhado de filhos mimados da burguesia, brincando de revolução, e a maior população de drogados da Europa serviam para animar um pouco as coisas.
Mas então o muro caiu e o tédio do leste foi libertado para que pudesse se fundir com o do oeste.
Isso também aconteceu em outras partes da Europa oriental, mas só em Berlim havia duas escolas em tão perfeito equilíbrio, interconectadas de forma tão íntima.
A apodrecida infraestrutura do comunismo se misturava aos chochos arranha-céus novos em estilo pseudoamericano, na Potsdamer Platz.
A nostalgia do comunismo e a globalização descontrolada se davam as mãos; e todos marcharam unidos para um admirável mundo novo de reciclagem, nudismo, música tecno minimalista e a pornografia mais vil do planeta.
Quem fica na cidade por tempo demais não demora a desconfiar que até a cena de arte “radical” é rigidamente conformista e “segura”.
Mas não pensem que estou me queixando. Amo Berlim. É um vislumbre do progresso em vidro e concreto, no qual os cientistas estão criando uma visão utópica de um “tediofuturo” diversificado, mas ordeiro, que um dia poderá triunfar em toda a Europa.
Tradução de Paulo Migliacci. DANIEL KALDER é escritor escocês, autor de “Lost Cosmonaut” (ed. Faber and Faber), em que apresenta o “Manifesto Antiturista” e relatos de visitas a ex-repúblicas soviéticas.
Folha de São Paulo, 8 November 2009